Edições anteriores da Escreva sua Marca:
Uma piada interna que foi longe demais
O conflito perfeito para uma história
Uma das habilidades que mais admiro é quando uma pessoa tem a mesma leveza e naturalidade para falar tanto sobre assuntos profundos e tabus, quanto sobre frivolidades da vida.
Um misto de vulnerabilidade com genuinidade e uma pitada de não se importar com autodepreciação.
São mais raros ainda os casos que fazem isso com humor, sem usar as piadas como camada de proteção.
Esse é o caso do Scott Hutchison, cantor, compositor e líder da banda escocesa Frightened Rabbit.
Até a escolha do nome, Frightened Rabbit, já conta bastante.
Quando crescia, Scott sempre foi daquelas crianças que preferem se esconder em eventos com muitas pessoas reunidas e, por conta dessa ansiedade social, seus pais diziam que ele parecia um “coelho assustado”.
A cada vez que escuto o álbum The Midnight Organ Fight, lançado em 2008, fico um pouco mais convencido que é um dos melhores de todos os tempos.
E que The Modern Leper é uma das melhores músicas já lançadas.
Sua apresentação mais icônica que podemos encontrar no YouTube acontece numa espécie de mini-navio abandonado no meio de uma floresta. Mas não é a versão mais icônica pelo cenário excêntrico, nem pela música em si.
Scott toca os primeiros acordes, canta o primeiro verso e simplesmente para — ao notar a presença de uma criança logo na primeira fileira.
"A vida pode estar boa agora", disse Hutchison em seu sotaque escocês marcante e, olhando para o garoto, completou "mas há muitos momentos difíceis pela frente."
Apesar de não ouvirmos a resposta do garoto no vídeo, o cantor então afirma “ele sabe… tá tudo bem” e, enquanto ele parece voltar para o violão, dá para notar que ele continua preocupado em contextualizar a música para o garoto. Poucos segundos depois, Scott então declara “alguém vai partir seu coração um dia”.
A plateia se divide em comoção e risos, ele ainda pede desculpas para a criança e recomeça a música.
Em menos de um minuto, você tem um resumo da essência de Scott Hutchison.
“A cripple walks amongst you all you tired human beings”
“Um aleijado caminha entre todos vocês, seres humanos cansados”
Se quiser entender melhor por que ele fez questão de parar a música, esse é o primeiro verso. A lepra moderna é a depressão de Scott.
Em vez da incapacidade de sentir dor, o protagonista de The Modern Leper tem a incapacidade de sentir.
É daquelas músicas que evolui e se intensifica a cada refrão, mas com um toque autodestrutivo quase profético.
Em vez da situação mais extrema de perder partes de extremidades e membros, ele se afasta de cada um dos pontos positivos de sua vida.
Aos poucos e a cada refrão, a canção e a narrativa crescem ainda mais, descrevendo detalhes de um relacionamento prestes a se exaurir, em seu último fôlego, ou em sua última “perna”.
“You must be a masochist to love a modern leper on his last leg”
A música ganha tons sombrios e Scott chega a cantar “estou doente, mas não estou morto e não sei qual desses eu prefiro”, mas a música tem uma virada positiva, com um dos desfechos mais perfeitos que eu conheço.
The Modern Leper é sobre se afastar e se privar de todos os aspectos positivos da sua vida, pouco a pouco, até chegar numa condição onde o personagem mal consegue enxergar…
“I'm lying on the ground now and you're walking through the only door. Well, I have lost my eyesight like I said I would, but I still know that that is you in front of me…”
”Estou caído no chão agora e você está passando pela única porta. Bem, perdi minha visão como disse que aconteceria, mas ainda sei que é você na minha frente..."
… e depois, sair desse lugar.
Numa nova perspectiva, Scott canta “você não está doente e eu continuo vivo, isso não nos torna o par perfeito?” e fecha com um convite que jamais conseguiria fazer antes.
“You should sit with me and we'll start again. And you can tell me all about what you did today”
“Você deveria se sentar comigo e começamos de novo. E você pode me contar tudo sobre o que fez hoje.”
Simples.
E simplesmente genial.
Tudo isso em menos de 4 minutos.
Se eu tivesse um disco físico do álbum The Midnight Organ Fight, provavelmente ele teria alguns riscos e danos de tanto que escutei nos últimos anos.
Como não tenho, Frightened Rabbit e The Modern Leper quase sempre aparecem no topo desses sites alternativos que mostram suas músicas mais escutadas no Spotify. E tiveram um destaque especial nas retrospectivas de 2020, 21 e 22.
Foram anos em que aprendi que solitude e solidão se confundem bastante, e logo eu, que sempre adorei passar horas sozinho na minha própria companhia, também aprendi que conviver demais comigo mesmo nem sempre era algo bom.
Nas vitórias, muitas vezes, celebrei sozinho. Ou nem celebrei.
Nas derrotas, me frustrei sozinho.
E sempre, independente do resultado, me cobrava sozinho.
Esse ciclo não me levou ao mesmo extremo do protagonista de The Modern Leper, mas me colocou várias vezes em um lugar onde eu acreditava que não conseguiria sair sozinho.
Muitas vezes, a resposta era trabalhar mais. Outras, caminhar.
Quase sempre acompanhado da trilha sonora de Frightened Rabbit.
Hoje em dia, quando saio para uma caminhada, não preciso mais de fones de ouvido para escutar The Midnight Organ Fight. Os primeiros acordes e o primeiro verso de The Modern Leper são reproduzidos automaticamente.
Por muitas vezes, mesmo que não por escolha racional, foi para abafar essa autocobrança, ter a companhia do Scott para pensar na vida e tentar sair daquele lugar — pelo menos pela próxima hora.
Foram várias caminhadas.
E algumas tentativas de escrever este texto. Por algum motivo, sentia que alguma parte de mim ainda estava presa ali.
Hoje, não mais.
Antes de sentar para escrever, apesar do frio, fiz questão de caminhar 7km sem o fone de ouvido e não falhou: os primeiros acordes que abrem a faixa e o álbum vieram rápido. Mas teve outra música que ressoou na minha cabeça por mais tempo.
E por mais que você jamais tenha escutado falar em Scott Hutchison ou Frightened Rabbit, faça o teste de pesquisar pela banda no YouTube e veja os comentários.
Praticamente todos os fãs têm uma conexão bem forte com o vocalista e alguns contam histórias de como as músicas de Hutchison os ajudaram.
Alguns dedicam até mesmo edições inteiras de newsletters para o artista.
Scott parece ter uma música no catálogo para cada adversidade que enfrentou: masculinidade tóxica, depressão, términos de relacionamentos, consumismo, alcoolismo, ansiedade.
Algumas com a mesma sofisticação e complexidade de The Modern Leper, outras mais simples. Todas com esse mesmo toque de genialidade simples de seus versos finais e com o mesmo misto de vulnerabilidade, genuinidade e uma pitada de não se importar com autodepreciação.
Não é à toa essa proximidade gigantesca que os fãs da banda acabam construindo com as letras.
É estranho.
Não tive a sorte ou o privilégio de ver um show da banda escocesa de perto. Menos ainda de conhecer Scott.
Mas a sensação é quase como se fosse um amigo próximo — daqueles que fazem favores que você sequer teria coragem de pedir.
Um favor ainda mais difícil de retribuir, porque, apesar de ter ajudado e acompanhado uma legião de fãs por momentos difíceis, as músicas do Frightened Rabbit não puderam salvar o líder da banda.
Em 9 de maio de 2018, Scott se despedia do mundo com seus últimos tweets.
A banda se tornou mais um reforço de que você não precisa ser a maior banda do mundo para significar exatamente isso para certas pessoas. Suas músicas, gravadas há muito tempo como uma banda indie pouco conhecida, deixaram uma marca em sua comunidade dispersa de ouvintes.
E suas músicas continuam me acompanhando.
Hoje, especialmente, foi esse trecho de Head Rolls Off:
"When it's all gone, something carries on. And it's not morbid at all (…) When my blood stops, someone else's will not. When my head rolls off, someone else's will turn. And while I'm alive, I'll make tiny changes to earth."
"Quando tudo se vai, algo continua. E não é nada mórbido (…) Quando meu sangue parar, o de alguém vai continuar. Quando minha cabeça rolar, a de alguém vai virar. E enquanto eu estiver vivo, farei pequenas mudanças na terra."
— Head Rolls Off, Frightened Rabbit
Um breve devaneio para antecipar um “até breve”: pode encarar esta edição como o penúltimo episódio da temporada de uma série.
Ainda teremos muitos encontros e conversas por aqui.
Dessa temporada, resta apenas mais um episódio.
Na próxima quarta, às 12:12.
Você vai entender melhor na próxima semana :)
São suas marcas a naturalidade e a maneira única de nos apresentar artistas que não necessariamente são hypados. Grande Dimi!
Textãozão 👏🏻👏🏻