Edições anteriores da Escreva sua Marca:
Uma geração de escritores sem voz
Existe valor no que não se encaixa (mesmo que quebre)
Quem disse que britânicos não se empolgam com shows mentiu.
Nós adoramos reforçar o mito de que só brasileiro sabe fazer plateia. Mas uma roda punk em solo britânico me mostrou que não é bem assim.
Primeiro, vem um empurrão despretensioso. Você até acha que é só alguém querendo passar, mas aí percebe que não.
As pessoas começam a se afastar, como se uma força invisível empurrasse todo mundo pra fora do centro.
O chão abre.
Um círculo se forma no meio da multidão, com a agilidade e a precisão como se tivesse sido coreografado, mas sem ninguém combinar.
E quem tá por ali… ou corre, ou aceita que vai ser jogado pra dentro.
Enquanto as pessoas se digladiam num mosh, o Brian Fallon, vocalista do The Gaslight Anthem, canta:
“Eu te amo mais do que as estrelas no céu
Mas seu nome me escapa hoje à noite.”
Uma escolha estranha para embalar uma roda punk, né?
Uma frase dessas — doce, lenta e melancólica — ecoando no meio de cotoveladas, ombros molhados de cerveja e um palco iluminado de vermelho?
Deixa eu te contar por que esse momento nunca mais saiu da minha cabeça.
Especialmente quando penso em escrita.
Nossa obsessão pela fórmula perfeita
Quando alguém começa a escrever conteúdo online, a maior parte das dúvidas gira em torno de uma pergunta disfarçada:
“Como eu grito mais alto que os outros?”
A dúvida tem várias formas: “qual formato converte mais?”, “qual título chama mais atenção?”, “carrossel ou vídeo?”. No fundo, a maioria resume uma busca incessante por um atalho mais fácil.
E se você for atrás das fórmulas, elas estão todas aí.
Uma das minhas preferidas resumia como escrever o artigo perfeito para o LinkedIn. Após analisar 3 mil artigos, Paul Shapiro cravou:
Entre 40 e 49 caracteres para o título, de preferência incluindo a palavra “Como” e em formato de lista. Nada de vídeos e procure incluir 8 imagens para tornar o texto mais visual.
E se todo mundo seguir isso?
A roda punk vira coral e todo conteúdo vira cover da banda anterior.
O espaço perfeito que não cabe ninguém
Na Força Aérea dos EUA, nos anos 50, fizeram algo parecido com nosso amigo Paul Shapiro: tentaram criar o cockpit ideal com base na média do corpo de 4 mil pilotos.
Quando finalmente construíram a cabine perfeita, nem um único piloto cabia na tal “média perfeita”.
E é assim que a gente escreve às vezes: tentando caber num cockpit feito pra alguém que não existe.
Nem você. Nem seu leitor.
Parece o caminho mais prático, mas pode ser perigoso.
Você troca o que tinha pra dizer por um formato que parece dizer alguma coisa.
Mas só parece.
De volta para nossa roda punk
Naquela noite, o palco estava todo no formato hardcore.
Mas a mensagem tinha a alma de um sussurro.
A música era “1930”, uma das minhas preferidas do Gaslight Anthem e, muito provavelmente, uma das minhas Top 20 de todos os tempos.
Por muito tempo, eu juro que achei que era mais uma sobre um término qualquer.
Até ouvir uma versão acústica, alguns anos depois.
Até escutar novamente aquela mesma frase, mas senti-la de uma forma diferente:
“Eu te amo mais do que as estrelas no céu
Mas seu nome me escapa hoje à noite.”
Mary, que parecia uma ex mal resolvida, na verdade, era a avó do vocalista.
Aquela não era uma canção de fim de namoro.
Era uma carta de despedida sua avó que sofria de Alzheimer.
Na música, ele quer contar para sua avó sobre seu novo relacionamento e sobre como ele encontrou alguém que se tornou sua melhor metade.
Mas esbarra na doença que rouba, pouco a pouco, a capacidade de formar novas memórias.
A cada reencontro, sua avó já não lembrava mais quem ele era, nem conseguia guardar as novidades que ele tanto queria compartilhar.
Por isso, a música soa como uma tentativa de vencer o esquecimento, como quem segura alguém pela mão antes que ela desapareça em um nevoeiro.
E foi só quando Brian Fallon deixou de gritar e pegou um violão que isso ficou claro.
Tem muita gente que insiste em escrever assim: uma carta de despedida escrita em caixa alta.
Uma tentativa genuína de se conectar, mas soterrada por técnicas de engajamento.
Nós empacotamos sentimento em fórmula.
Damos título de “X aprendizados” pro luto.
Mas tem frase que parece não pertencer a uma roda punk. Até que você percebe que é exatamente ali que ela pertence.
Na escrita, como na vida, tem espaço para o grito.
Mas quando tudo vira grito, o que toca mesmo… é o sussurro que atravessa.
E às vezes, a frase que mais gruda não é a que viraliza.
É a que te obriga a lembrar de alguém que você perdeu — e que, de repente, te escapa o nome.
No fim, a melhor pergunta não é “qual o formato ideal?”
É “você está dizendo o que precisa ser dito, ou só tentando caber na média?”
Porque a média não cabe em ninguém.
E conteúdo bom... bom conteúdo é aquele que, mesmo no meio da roda punk, ainda consegue dizer:
“Eu te amo mais do que as estrelas no céu
Mas seu nome me escapa hoje à noite.”
Um abraço e até a próxima,
Eu sou completamente suspeita pra concordar com esse texto, porque vivo repetindo que meu trabalho — e meu propósito — orbitam entre cultura, conversa, caos e conteúdo. E nada me encanta mais do que ver tudo isso virar memória, virar história, virar vida vivida.
Que coisa linda essa história da música — eu não conhecia! Já foi direto pra playlist e pro repertório de afetos. Porque no fim, é isso: a gente não quer ser fórmula. A gente quer ser lembrança. Quer ser aquela presença que ressoa — como uma canção que te encontra no meio do dia e te faz parar, sorrir, lembrar, chorar, gritar.